Caçadores da verdade perdida
Café Brasil 538 - Este programa foi publicado originalmente em 06/12/2016
No programa em que tratei da pós-verdade, comentei que as mídias sociais estão repletas de mentiras que, de tanto circular, acabam sendo confundidas com verdades.
O que é que podemos fazer a respeito, hein?
Em 1996 a professora Bella DePaulo, psicóloga social da Universidade de Virgínia, realizou um estudo com 147 pessoas com idades entre 18 e 71 anos. Pediu que todos mantivessem um diário no qual registrassem as mentiras que disseram ao longo da semana.
Ela descobriu que a maioria das pessoas mente uma ou duas vezes por dia. Tanto quanto escovam os dentes. Homens e mulheres mentem em um quinto das interações sociais que duram mais de dez minutos e ao longo da semana, enganam cerca de 30% das pessoas com as quais mantêm contato.
E mais, alguns tipos de relações, especialmente entre pais e filhos adolescentes, são fábricas de mentiras… A pesquisa mostrou que jovens mentem para suas mães em uma de cada duas conversas.
O filósofo Nietzsche disse uma vez que mentir é uma condição da vida.
É, meu caro, minha cara… Vivemos num mundo de mentiras.
Opa. A baiana Karina Buhr nos traz EU MENTI PRA VOCÊ…
Pois é… Mas uma coisa me intriga, viu. Se eu minto para uma autoridade, para um júri, eu vou pra cadeia. Pago multas.
Porque é que a gente vê tanto político mentindo e nada acontece com eles, hein? Bem, quase nada, não é?
O Eduardo Cunha dançou porque mentiu sobre suas contas no exterior, mas a gente sabe que não foi bem por isso, não é? O Lula deve pegar uma cana brava por mentir sobre seu tríplex…
Mas parece que a sociedade faz uma diferenciação entre os que mentem para nós e os que mentem por nós. Sacou?
A mentira para você é diferente da mentira por você.
Os estudiosos da mente têm uma série de termos para os truques mentais que usamos para confiar e acreditar somente naquilo que queremos. Tratei disso no Café Brasil 508 – Dissonância Cognitiva.
Usamos ferramentas de nosso subconsciente que nos ajudam a interpretar as informações para fazer os julgamentos e tomar as decisões que são melhores para nós. E quando praticamos a negação subjetiva dos fatos, escolhendo acreditar em nossos sentimentos e não na realidade, abrimos caminho para acreditar nas mais absurdas mentiras.
E isso não acontece porque somos maus ou idiotas. Acontece porque esse tipo de raciocínio, de acreditar naquilo que queremos que seja verdade, está conectado a nada menos que nossa percepção de segurança e sobrevivência.
Veja o caso das pesquisas políticas. A gente quer acreditar naquela pesquisa que diz que nosso candidato está à frente. Isso faz com que nos sintamos pertencentes a uma tribo.
A Ciça quer acreditar que o sítio e o tríplex não são do Lula. Ela precisa disso para se sentir fiel à sua tribo. E não há argumento lógico que consiga mudar essa crença. Se isso acontecer ela entra em pane.
Apoiar a tribo acreditando na sua visão, apoiando os pronunciamentos dos líderes, acreditando nas suas verdades, aumenta a coesão tribal, ajudando a tribo a vencer seus inimigos.
Ser parte de uma tribo é, portanto, fundamental para animais sociais como nós. Dependemos de nossas tribos para nossa saúde física e mental, portanto tendemos a acreditar em nossos líderes mesmo quando dizem uma mentira cabeluda diante de nossos narizes.
É quando damos as cambalhotas cognitivas para enxergar os fatos do jeito que eles querem que enxerguemos, e não objetivamente.
Objetividade não é o objetivo. Coesão social e sobrevivência sim.
Sacou?
Deixe-me voltar àquele conceito do mentir para mim e mentir por mim.
Lalá manda aí o Naldo Luiz com MENTIR PRA QUÊ, do professor Pereirinha.
Quando acreditamos que um político, especialmente um candidato, está mentindo em nome do sucesso da nossa tribo ou partido, aquela cambalhota cognitiva do inconsciente nos diz assim ó:
– Olha, ele está mentindo pelo seu bem!
Já os membros da tribo adversária pensarão bem diferente:
– Olha, ele está mentindo para nosso mal!
Entendeu onde a mente nos leva, hein?
Assim somos diariamente bombardeados por argumentos que tentam transformar a mentira para nós em mentira por nós.
– A pedalada foi para pagar a bolsa família!
– O caixa dois foi para o partido ganhar a eleição e nos defender!
– O confisco de seu dinheiro foi pelo bem da nação!
– Botei fogo na banca de revista do seu João por um Brasil melhor!
Repare no seu dia a dia quanta gente tentará que você acredite que a mentira é por você, para seu bem…
E o pior é que a gente acredita!
Imagine agora um político ou um candidato a um cargo público… ele só mente para os membros da outra tribo! E o que se vê é isso aí: um monte de gente na rua pelo impeachment, outro monte contra o impeachment.
Gente gritando “é golpe” e gente dizendo “não é golpe”. Gente gritando viva Fidel! E gente gritando “vai pro inferno Fidel”. E todos achando que quem está errado é o outro…
Só quando todos acreditamos que um indivíduo ou uma organização estão mentindo para todos é que nos unimos e botamos o desgraçado na cadeia. Ou o demitimos.
Veja o que aconteceu quando os deputados começaram a se articular para aprovar projeto que possibilitaria uma anistia para o crime da caixa dois… de repente me vi compartilhando posts de gente que sempre esteve no meu oposto ideológico, mas que agora estava ao meu lado, contra uma ação que faria mal para todos nós.
E escrevi um post assim no Facebook:
Passei o dia trancado no estúdio. Quando saio vejo minha timeline tomada por coxinhas, mortadelas, liberais, conservadores, socialistas, comunistas, feministas, machistas, religiosos, ateus e carnavalescos.
Todos indignados gritando a mesma coisa: vergonha pela tentativa de melar a Lava Jato, vergonha por Geddel, vergonha pelos conchavos para anistiar o Caixa 2.
Parabéns presidente Temer. Parabéns senhores congressistas!
Vocês estão unindo o Brasil.
Olha só. Trio Esperança com EU TE AMO MEU BRASIL, aquela composição de Dom, da dupla Dom e Ravel, que um dia foi um hino deste país…
O que fazer então, hein? Bem, não quero aqui tratar da questão das mentiras pessoais, de indivíduo para indivíduo. Quero ir na linha do programa sobre a pós-verdade, o povo que espalha mensagens falsas por aí.
Mas vamos lá então, ver o que é que dá pra fazer. Primeiro é ficar certo de que todos temos os elementos necessários para detectar as mentiras que nos cercam e nos proteger delas. Taí ó. Na sua caixa de ferramenta, dentro do cérebro.
Em primeiro lugar um exercício de humildade: é preciso ter a consciência de que a gente não entende de tudo. O mundo é complexo demais, as interações, as questões políticas, econômicas e sociais são realmente muito complicadas e a quantidade de informações que circula pela web é enorme.
Apesar de termos um cérebro sofisticado e equipado com as ferramentas para lidar com tanta informação e especialmente para identificar as coisas que não fazem sentido, ficar confuso ou se sentir incapaz de acompanhar uma argumentação é algo perfeitamente normal.
Especialmente quando lidamos com assuntos fora de nossa alçada de experiências. Ou pior ainda, conflitante com nossas experiências. Sendo assim, admitir que não entendemos ou desconhecemos algo é o primeiro passo para escapar das mentiras.
Primeiro passo então: reconheça sua ignorância e estude para acabar com ela.
Segundo passo: comece a contestar o que você vê nas mídias sociais perguntando a si próprio porque você concorda ou discorda do assunto de forma tão intensa, hein? Sua reação vem de onde? De sua experiência de vida? Do que você aprendeu na escola? De um artigo que você leu? De algo que alguém lhe contou?
Do fato daquilo ter sido compartilhado por alguém em quem você confia? Ou apenas porque parece que a informação está certa, hein? Geralmente acreditamos numa informação não porque tenhamos refletido ou estudado sobre ela, mas porque ela parece certa. Ela se encaixa naquilo que nós acreditamos.
Quando acreditamos em alguma coisa apenas porque ela se encaixa naquilo em que acreditamos, estamos lidando com um preconceito.
Todos temos preconceitos. E o primeiro passo para aprender alguma coisa nova é reconhecer nossos preconceitos.
Com os preconceitos reconhecidos, devemos então partir para o trabalho duro: descobrir se a informação é verdadeira ou não.
A primeira coisa para saber se uma informação é verdadeira ou não, é descobrir qual sua origem. De onde vem, hein? Buscar a fonte primária. E o Google é a grande ferramenta para isso.
Eu faço esse exercício diariamente: sempre que recebo um post interessante parto para descobrir a sua origem, quem escreveu, o que o especialista escreveu antes, em que tipo de veículo de imprensa ele escreve, hein?
Os norte-americanos têm um termo para isso: fact checking, checagem dos fatos.
E vou te passar um truque me salvou centenas de vezes: quando recebo uma informação importante pego a palavra-chave, vou para o Google e digito na busca a palavra mais o termo hoax (agá-o-a-xis). Hoax quer dizer dizer “engano”, “embuste” ou “pregar uma peça”. O que surge na sequência são os sites que já se debruçaram na caça da mentira.
Você pode digitar outras palavras, como farsa, embuste ou coisa parecida. Eu uso hoax e nunca deu errado.
Existem vários sites especializados, um dos principais é o e-farsas.com.br na verdade é o e traço farsas, que vira e mexe está desvendando os mistérios que circulam pela web. Recomendo uma visita ao canal deles no Youtube.
Aliás, o Gilmar Lopes, criador do E-farsas fez uma palestra mostrando como é que ele faz o trabalho dele. Vou colocar o link no roteiro deste programa no portalcafebrasil.com.br . Olha, vale a pena, viu?
Outro ponto fundamental: as fontes. As fontes… Coisas como “eu sei”, “dizem” , “muitas pessoas estão dizendo”, “todo mundo sabe”, “uma pesquisa demonstrou” já bastam para acender a luzinha vermelha. Essas frases são usadas para pegar você por seus sentimentos e preconceitos, para ultrapassar a barreira do pensamento crítico.
-Pô meu, se todo mundo tá dizendo, deve ser verdade, né?
Isso é especialmente importante quando se fala de números, especialmente estatísticas. Sempre que você trombar com as estatísticas, com aquelas informações sobre percentual, tipo 60% dos entrevistados dizem isso ou aquilo, fique esperto.
Números, percentuais e estatísticas que não sabemos como foram obtidos ou de onde vieram são uma fonte valiosa para quem quer pregar uma mentira.
Sempre que recebo uma informação rica em estatísticas, vou atrás de alguma fonte. Recentemente eu estava fazendo um levantamento sobre quantidade de mortos na guerra do Iraque e achei um número. Mas foi só aprofundar a pesquisa para encontrar outros totalmente diferentes.
Parei então para ver quem bancava os sites que eu estava consultando, quem eram seus patrocinadores. Que tipo de interesse comercial ou político estava por trás daquela informação. E assim pude fazer uma escolha, que não é necessariamente a verdade, mas ao menos me permitiu exercitar meu sendo crítico para escolher aquela que eu julguei a mais verídica.
A dica sobre a tal pesquisa de Bella DePaulo, por exemplo, encontrei num artigo que trata de verdade sobre as mentiras num site dos Estados Unidos. A primeira coisa que fiz foi ir ao Google para ver se Bella DePaulo existe, o que faz e confirmar se a informação tinha veracidade. E só depois de confirmar é que parti para este texto
E os sites de jornais e revistas, hein? Podem ser sim uma fonte de informação, mas estão muito longe de trazerem apenas verdades.
Especialmente se o assunto for política ou alguns dos temas quentes em discussão na sociedade. Normalmente jornais e revistas não mergulham fundo nos temas e, se bobear, tem ali a opinião de um ou dois jornalistas apenas.
Vá mais fundo meu. Busque outras fontes. Você também achava que a Hillary Clinton tinha 85% de chances de ganhar as eleições nos Estados Unidos, não é? E viu isso onde? Pois é…
Uma outra fonte de pesquisas valiosa é a Wikipedia, mas ela só deve ser usada para introduzir você a um determinado tema. Quando estou pesquisando e recorro à Wikipedia, vou para as áreas de ligações externas e referências e saio buscando informações mais aprofundadas. Dependendo do tema, eu vou para a Wikipedia em inglês.
Dá trabalho? Claro que sim. Mas a alternativa é fazer papel de idiota.
Muito bem… vivemos tempos complicados, ameaçadores, repletos de desafios. Somos diariamente confrontados com mentiras contadas por salvadores da humanidade. Nos sentimos fragilizados, em perigo. Esse é um contexto que se torna polarizado, tribal. Tempos em que os líderes podem contar as mentiras mais cabeludas e mesmo assim inspirar nosso apoio e não revolta.
Preste então atenção às informações que você recebe, compartilha e acredita. Políticos não estão interessados na verdade. Estão interessados nas divisões tribais, no conflito, na vitória em nome do poder, controle e segurança…da sua tribo.
Se para isso tiverem de liquidar com a verdade, que assim seja.
E nós fazemos o quê? Damos um nome pomposo à mentira, dizemos que todos agem assim, inclusive o nosso lado… e reclamar nos dá um conforto, não é? No fundo, é só isso que interessa.
E é assim então, ao som do MALANDRO MODERNO, com o mestre Bezerra da Silva, que este Café Brasil vai saindo de mansinho. Aliás no embalo, no sambinha, no passinho…
Com o atento Lalá Moreira na técnica, a desconfiada Ciça Camargo na produção e eu, o eterno caçador da verdade perdida, Luciano Pires, na direção e apresentação.
Estiveram conosco o ouvinte Roberto, Trio Esperança, Naldo Luiz, Rodrigo Torino, Bezerra da Silva e Karina Buhr.
FONTE: PODCAST CAFÉ BRASIL