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O medo de não pertencer

O aumento da intolerância para com os grupos estrangeiros, é motivada pelas diferenças culturais, sociais, raciais e religiosas.

O preconceito ou a intolerância para com grupos estrangeiros aumenta a cada dia na Europa, pois o velho continente, é um dos locais que mais recebe migrantes, sendo que atualmente, estima-se entre seis milhões de migrantes, entre legais e ilegais, sem considerar as migrações resultante da guerra da Ucrânia.

O aumento da intolerância para com os grupos estrangeiros, é motivada pelas diferenças culturais, sociais, raciais e religiosas.

Os estrangeiros são considerados intrusos e competidores, embora a vaga de empregos fique restrita à mão de obra manual e pesada, com baixa remuneração.

Esse fenômeno já era observado, na antiga Grécia, antes de Cristo, onde a pessoa diferente do conterrâneo, eram considerados estrangeiros e logo não civilizados, bárbaros e inferiores.

Os gregos ao considerar o estrangeiro como um ser bárbaro, estavam manifestando o etnocentrismo, isto é, a visão de alguém que considera o seu     grupo étnico ou cultura o centro de tudo, o que é uma fraqueza do ser humano, como pessoa e povo.

Estabelecido que o preconceito contra os estrangeiros está enraizado nos Estados Unidos e na Europa, conforme também PLANO NACIONAL DE COMBATE AO RACISMO E À DISCRIMINAÇÃO 2021-2025 – #PortugalContraORacismo, vamos tratar um pouco sobre o medo do desconhecido ou estranho.

Para o psicanalista Christian Dunker e professor titular da Universidade de São Paulo (USP), o medo é um afeto.

“O medo é um afeto, e envolve o modo como um estímulo nos afeta, e também o que ele evoca em nós em termos de resposta, ou seja, de emoção. O medo é um dos seis afetos fundamentais descrito por Darwin, um dos seis padrões de reconhecimento facial mais primitivos da experiência humana. No processo de socialização, a interpretação do medo é muito básica, tanto para pensar mecanismos de defesa da espécie, quanto de ligação com o outro”.

Segundo Dunker, “é graças ao medo que aprendemos que o amor é uma atitude de proteção, pois ao longo da vida somos estimulados a lidar com o medo, e assim substituí-lo o medo por situações de segurança. Aprender a usar produtivamente o medo é essencial para conseguirmos sair de nossa zona de conforto e nos aventurar pelo mundo”.

“Quando dizemos que uma pessoa é imatura, na verdade estamos dizendo que ela não aprendeu a desenvolver reações mais complexas em relação ao medo que ela sente”.

Para Freud, texto O Estranho (1919), o estranhamento, o sentimento inquietante frente ao estrangeiro é o desconhecimento de si projetado no outro humano.

Freud afirma que todos somos estrangeiros de nós mesmos; a estranheza também é nossa, apesar de habitarmos o mesmo lugar que é sentido como inquietante.

Se o estranho está em mim, se sou estrangeiro, então somos todos estrangeiros. O ‘estrangeiro’ está dentro de nós. E quando fugimos ou lutamos com o estrangeiro, combatemos nosso próprio inconsciente, este “impróprio” do nosso “próprio” impossível. Quanto mais me torno consciente das minhas estranhezas e das minhas diferenças, mais posso tolerar sua presença no outro.

Para entender melhor o que se passa na alma de quem deixou a sua terra natal para viver em outro país, transcrevo aqui o texto de Clarice Lispector.

Clarice Lispector é uma escritora e jornalista que reivindicou o Brasil como sua terra natal apesar de ter nascido na Ucrânia. Fato é que a escritora chegou ao país bem novinha, com a família, que fugia de uma guerra civil e da perseguição a judeus que sucederam à Revolução Bolchevique de 1917.

 

Clarice Lispector (1920-1977) foi um dos maiores nomes da literatura brasileira do Século XX. Com seu romance inovador e com sua linguagem altamente poética, sua obra se destacou diante dos modelos narrativos tradicionais.

Pertencer

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.

Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de “solidão de não pertencer”

Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética.

É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e, no entanto, premente sensação de precisar pertencer.

Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença.

Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei.

Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.


Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver.

Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.

Clarice Lispector – A Descoberta do Mundo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira

A finalidade dessas reflexões é despertar o sentimento de acolhimento ao estrangeiro e também provocar ações que ajudem melhorar a nossa breve peregrinação nesta terra.

Boas Festas. Feliz Natal

Fonte: Entrevista Christian Dunker – Site Lunetas

Welinton Brunialti – Professor /Jornalista e Engenheiro

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