A visita ao Brasil de Marie Curie, única mulher a ganhar duas vezes o Nobel
A visita de Marie Skłodowska-Curie ao Brasil durou 44 dias: de 15 de julho a 28 de agosto de 1926.
- André Bernardo –,Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
No dia 18 de agosto de 1926, Guimarães Rosa, Juscelino Kubitschek e Pedro Nava, com idades entre 18 e 24 anos, assistiram a uma palestra sobre radioatividade e sua aplicação no tratamento do câncer no auditório da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.
Não era uma palestra qualquer. Naquele dia, a UFMG recebeu a visita ilustre de Marie Curie, então com 59 anos. A cientista polonesa naturalizada francesa ganhou duas vezes o mais importante prêmio científico do planeta, o Nobel — o primeiro, de física, em 1903, e o segundo, de química, em 1911.
Até hoje, apenas cinco cientistas, de um total de 954, ganharam dois prêmios Nobel. São eles: Marie Curie (física, 1903, e química, 1911), Linus Carl Pauling (química, 1954, e paz, 1962), John Bardeen (física, 1956 e 1972), Frederick Sanger (química, 1958 e 1980) e Barry Sharpless (química, 2001 e 2022).
Uma curiosidade: o recordista em premiações é o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Fundado em 1863 pelo filantropo suíço Henry Dunant, ganhou três vezes o Nobel da Paz: em 1917, 1944 e 1963.
“Era pequena de estatura. Andava de vestido negro, saia arrastando. Apresentou-se sempre com a mesma roupa, mal penteada, mãos vermelhas maltratadas e vi suas botinas de salto baixo tendo abotoadas só o botão de cima”, descreveu o médico e escritor Pedro Nava em Beira-Mar (1978), o quarto volume de suas memórias.
“Mas, ensinando, transfigurava-se e as suas palavras nosso anfiteatro iluminou-se ainda mais — como se passassem por suas paredes raios urânicos, centelhas radioativas e faíscas ferromagnéticas”.
Uma celebridade pop
A visita de Marie Skłodowska-Curie ao Brasil durou 44 dias: de 15 de julho a 28 de agosto de 1926.
Chegou ao Rio de Janeiro, a capital do país, vinda de Marselha, na França. Veio a bordo do Pincio, um navio de luxo movido a vapor, em companhia da primogênita, Irène, que exercia a função de secretária particular.
À época, Marie Curie já era viúva do físico francês Pierre Curie. Seu marido morreu atropelado por uma carruagem no dia 19 de abril de 1906, ao atravessar uma rua movimentada de Paris, a Dauphine.
Mãe e filha foram recebidas no Brasil por uma comissão formada, entre outros notáveis, pelos médicos Juliano Moreira, um dos pioneiros da psiquiatria no Brasil, e Roquette Pinto, um dos pais da radiodifusão.
Durante sua visita, Marie Curie foi acompanhada por Bertha Lutz, então presidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e uma das maiores ativistas na luta pelos direitos políticos das mulheres brasileiras.
“Madame Curie chegou ao Brasil como uma estrela. Havia sempre um vagão de luxo reservado para ela e sua filha. Era tratada como um ser divino”, afirma João Pedro Braga, pós-doutor em Química pela Universidade de Princeton e coautor, ao lado de Cássius Klay Nascimento, de A Visita de Marie Curie ao Brasil (2017).
“Nos locais que frequentou, as pessoas usavam as mais elegantes vestimentas – a última moda em Paris. Já Marie Curie usava, como observou Pedro Nava, um ‘costume sebento’. Ela sempre foi uma mulher simples”.
Por uma série de doze conferências, Marie Curie ganhou 75 mil francos (o equivalente hoje a 419 mil reais) — 25 mil francos do governo francês, antes da viagem, e 50 mil do governo brasileiro, ao chegar ao Rio.
Cansadas da viagem de navio, que durou 13 dias, Marie e Irène seguiram direto para o Hotel dos Estrangeiros, no Flamengo. Enquanto Marie se deitou para descansar — a cientista já sentia os efeitos nocivos da prolongada exposição à radiação —, Irène vestiu um maiô e tomou banho de mar.
Em 17 de julho, Marie Curie escreveu uma carta para Ève, a caçula que permanecera em Paris. Entre outras coisas, elogiou o quarto de hotel, que classificou de “muito bonito”, e reclamou do barulho dos bondes.
Apesar de sua aversão à imprensa, desde que tabloides franceses expuseram seu caso amoroso com um homem casado, Paul Langevin, a cientista concedeu entrevista ao jornal O Paiz.
A primeira das doze conferências aconteceu no dia 20 de julho, no salão nobre da Escola Politécnica, e foi transmitida pela Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a primeira emissora do Brasil, inaugurada três anos antes.
Muitos alunos, por falta de espaço, não puderam assistir à apresentação. Houve um princípio de tumulto e, por essa razão, as conferências seguintes foram transferidas para o andar térreo da instituição.
Entre uma conferência e outra, Marie Curie conheceu pontos turísticos da cidade, como o Pão de Açúcar, o Corcovado e o Jardim Botânico, e visitou municípios vizinhos, como Petrópolis, Vassouras e Barra do Piraí.
Do Rio, Marie Curie seguiu para São Paulo. Na capital paulista, permaneceu três dias: 13, 14 e 15 de agosto.
Hospedada no Hotel Terminus, na esquina da Brigadeiro Tobias com a Washington Luís, deu sua palestra em um dos anfiteatros da Faculdade de Medicina.
Em São Paulo, visitou o Butantan, viajou até Águas de Lindóia e assistiu a um baile em sua homenagem.
A última etapa da visita ocorreu em Belo Horizonte, entre os dias 16 e 18 de agosto.
Na capital mineira, hospedou-se no Grande Hotel Internacional, onde hoje funciona o Edifício Arcângelo Maletta, e deu palestra na Faculdade de Medicina.
Visitou as cidades de Sabará e Lagoa Santa, distantes 19 e 35 quilômetros da capital mineira.
Uma das fotos tiradas durante sua visita ao Brasil foi em frente ao Instituto de Rádio de Belo Horizonte, que pertence hoje ao Hospital das Clínicas da UFMG.
Marie e Irène Curie voltaram ao Rio no dia 18 de agosto e seguiram para Marselha, dez dias depois, no dia 28.
Além do Brasil, Marie Curie visitou também a Bélgica, a Espanha e a Tchecoslováquia. Nos Estados Unidos, chegou a ser recebida na Casa Branca pelo então presidente Herbert Hoover, em 1929.
No mesmo ano de sua visita ao Brasil, assistiu ao casamento da filha, Irène, com Frédéric Joliot.
Juntos, os dois ganharam um Nobel de química, em 1935, pela radioatividade artificial. Foi o terceiro Nobel que a família Curie levou para casa.
“No lançamento de nosso livro em polonês, os netos do casal Curie, Hélène e Pierre, contaram que o pai, Frédéric, sempre questionou, em tom de brincadeira, o fato de que, bem no ano de seu casamento, a futura noiva, Irène, permaneceu tanto tempo no Brasil”, diz João Pedro Braga.